"Deus(es)"

06-09-2010 12:27

Nunca senti devoção por Deus ou por outro qualquer ser não Humano. Nunca o senti, até hoje. Adormeci em mim e vivi. Procurava a estrada de regresso à realidade, quando encontrei uma menina. Vestia uma farda colegial em tons de branco e padrão xadrez. A sua cabeça, encantadoramente adornada por uma fita de seda, deixava cair pequenos e definidos cachos loiros sobre os ombros. Era a mais bela menina que alguma vez meus olhos haviam tocado. Ria e corria livremente, inconsciente da minha presença. Na mão direita, segurava um ramo de girassóis, enquanto que, com a esquerda, apoiava uma cesta onde os acomodava. Desviei-me da minha rota e aproximei-me, vagarosamente, da pequena para não espantá-la com a minha estranha presença. Parei a seu lado, era ainda mais encantadora àquela encurtada distância. Consciente, agora, de mim, a pequena continuou a sua empenhada tarefa despreocupadamente. Quem és? Interrompia. Respondeu, enquanto continuava a escolher os girassóis. Chamavam-me Anjo, lá onde vivia, aqui não tenho nome, ninguém chama por mim. Surpreenderam-me as suas palavras, contudo, foi a confortável postura com que as proferiu o que mais me espantou. Anjo, de onde vens? Deteve-se. Olhou demoradamente para o céu, indicando a sua origem. Senti-me triste, porque ela se sentiu. Não queria causar-lhe infelicidade ou dor, ainda assim, o fiz. Lá no Céu fui um anjo. Saltava de nuvem em nuvem, cumpria tarefas divinas e ajudava os Homens que pediam o meu auxílio. Não era menino ou menina, era bondade, altruísmo, compaixão, amor, doçura e partilhava-me com os outros. Tinha asas e voava. Tinha uma varinha e transformava a realidade mais bela nos corações dos que possuíam esperança. Mas um dia fui vaidade e perdi-me. Caí neste campo de girassóis e era menina e tinha de colher todos os girassóis desta Terra para poder regressar ao Céu. No entanto, não o conseguia sozinha, então, implorei ajuda a todos os que passavam e que antes eu tinha amparado. Recusaram-ma. A bondade, o altruísmo, a compaixão, o amor, a doçura que lhes ofereci, perdeu-se quando eu me perdi. Só restou a vaidade e o egoísmo. Grito-lhes que me ajudem, mas não me ouvem. Coloco-me no seu caminho para que me vejam, mas atropelam-me e não me enxergam. Estão surdos e cegos pela inveja e se não me ajudam não poderei auxiliá-los. A história do pequeno anjo era enternecedora. Queria ajudá-la. Como posso ouvir-te e ver-te quando todos os outros não conseguem? Podes, porque não tens futilidade em ti. Podes, porque tens os sentidos na alma, não na tua mente humana. Acreditas em mais do que crês, por isso estás aqui comigo e não sozinha num campo de girassóis, como os outros.

Juntas colhemos todos os girassóis antes que o relógio pudesse sequer mover-se. Podes regressar ao teu lar agora, meu doce anjinho, tua família espera-te. Não. Minha família está aqui, onde me permitem existir. O Homem criou-me, a mim, a Deus e ao Diabo. Vivemos na sua mente e nela só dizemos o que espera e deseja ouvir. A bondade, o altruísmo, a compaixão, o amor, a doçura não podem ser ofertados por nós, criaturas imaginárias, meros reflexos. O Homem só as conseguirá, quando parar para ajudar outro que o necessite, desviando-se do seu caminho, previamente estipulado, e permitindo-se a descobrir novos, tal como tu.

Acordei! Mantive os olhos cerrados e o corpo debaixo do edredão, aguardando que o sonho retornasse, mas não voltou. Permaneci na minha cama, fechada em mim, tentando compreender o que havia acontecido. Em vão, não o entendi. Não do jeito que a angelical menina queria que entendesse, entendi-o do meu jeito. Deus, do qual tanto duvidei, existe. Vive em quem o adquire como seu, e é omnipresente, pois está em cada um que o acredita. Mas não é o mesmo em cada um. É diferente, porque somos diferentes e cremo-lo de maneiras distintas. Gostava que existisse também em mim, mas não existe. Existo eu, as minhas criações e ilusões, o bem e o mal. Provavelmente, Deus também habita em mim, enquanto criação que a mente produziu. Não como Deus auto-suficiente que me fez para depois se criar em mim. Eu fui a sua criadora e ele depende de mim para viver, assim como, também eu dependo dele. Existimos mutuamente e isso satisfaz-me e permite-me prosseguir mais um dia. Abro os olhos. Encaro a luz do sol e continuo. Deixo esses pensamentos guardados na estante da biblioteca. Amanhã gostava de abrir um livro de aventura!