"Devagar e Tortuosamente"

07-09-2010 11:16

 

Devagar e tortuosamente, consome-me como uma chama que inflama e se esvai. Aquece e desaparece e volta para me incendiar uma vez mais. Gira, roda, vai embora e volta para me atormentar. E no entretanto, apenas consigo recordar a vida que não tive. Vivi e aproveitei, mas não restou nada para o Agora. Foi bom, mas ficou lá. Hoje, corpo deserto, jazo aqui sem a vida que vivi, somente a lembrança me apoquenta. Queria alterá-la sem a mudar. Queria transformá-la na realidade deste instante e poder tocá-la como antes. Foi boa, lá trás, foi boa, mas agora não está. Não produziu continuidade. Ficou-se. Sinto, se sentisse outra coisa além desta dor que, devagar e tortuosamente, me consome, e acho que desapareci. Os outros vêem que não me viram. Esquecemos. Consumi-me e evaporei. Sou fumaça que apenas incomoda por breves momentos, depois vai-se e esquece-se. Devagar e tortuosamente, a morte avança para mim, já sem vida, anseio que chegue depressa. Não vem. Aproxima-se e afasta-se, lentamente, para me torturar. Olho em redor, procuro incessantemente uma mão que me leve. Estou só entre quatro paredes que me bloqueiam as sensações. Só a dor consegue atravessá-las e estou só. Eu, a solidão e a dolência por ela provocada. Definho, vagarosamente, e começo a sonhar. Ele entra com a sua bata branca, sem rosto e toca-me. O instrumento soa frio quando penetra a decadência cutânea. Atravessa-a e esquenta-a. Ele vai e eu fico-me. Agora, pesado e bloqueado do resto, enterro-me profundamente no colchão e vou. Não queria partir e não ser, mas já não sou. Estou a ir-me…. Desintegro-me e não quero ficar, mas então, porque anseio nascer de novo e voltar? Quero partir sem deixar. Olho, novamente, e não está ninguém. Alguma vez esteve? Acordo e não passou de sonho bom. Uma chama suporta-me a mão na sua abrasadora palma e fiquei. Não mais vi ou ouvi ou senti. Fui e fiquei. Os dedos entrelaçados seguraram o que de mim havia para guardar e fiquei, enquanto ia. Onde estou depois de vir, é triste e não tenho, mas fiquei lá em baixo. Alguém me acomodou em si, mesmo após a esperança ter abalado. Descanso, acordado de mim. Devagar e tortuosamente, deixei de ser e tornei-me.